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Historicamente, e, portanto, culturalmente, dir-se-ia que há uma força que puxa Portugal para Sul. Essa força faz-se sentir em particular neste tempo em que o Norte nos chama a Bruxelas e a Berlim para prestarmos contas e apresentarmos as nossas orelhas. Na teoria contemporânea, a abordagem pós-colonial incide essencialmente no imperialismo com origem a Norte. Os manuais ou textos fundadores do pós-colonialismo ausentam Portugal, o que não deixa de ser interessante. Seríamos o Império que não foi, mesmo com o Brasil, a Ásia e o caleidoscópio africano. 

De qualquer modo, eu diria que o colonialismo português em África escapa às narrativas pós-coloniais que se tem imposto na teoria e talvez, portanto, a ausência portuguesa não seja só por desconhecimento ou desinteresse. 

A obra de Pancho Guedes não representa o modelo do processo colonial português, mas é sinal de uma disponibilidade geo-cultural particular. Se o nosso pós-colonialismo procurar, como deve, a especificidade do processo português, deverá ter em conta a obra de Pancho como extremar de uma sensibilidade comum.

Falo a propósito de À procura de Pancho, o belíssimo filme de Christopher Bisset que pode ser visto na Internet, em que um estudante solitário visita as “ruínas” de Pancho em Maputo; e de As Áfricas de Pancho, exposição comissariada por Alexandre Pomar (Mercado de Santa Clara, Lisboa, entre 17 de Dezembro de 2010 e 8 de Março de 2011), que mostrava peças da colecção de Dori e Amâncio Guedes.

A invocação geral do pós-colonialismo – “podem os subalternos falar?” – encontra em Pancho uma ressonância particular. Na obra de Pancho os subalternos já falavam. Podemos, aliás, ver a própria cultura portuguesa do período moderno do século XX como subalterna. Nesse caso, estaríamos perante um diálogo entre a voz subalterna do colonizador e a voz subalterna do colonizado.

Pancho é um colonizador colonizado pelo Norte, pela arquitectura moderna, de que está sempre em processo de desejo e rejeição. Nesse sentido de dar “voz ao subalterno”, Pancho é talvez já pós-colonial no seio do colonialismo português. Ocupa um limbo, um espaço em que o colonizador se vira do avesso e se expõe como colonizado. Toda a obra de Pancho visa, à maneira do Team 10 e para lá do Team 10, fazer o luto da arquitectura moderna; ou do “eurocentrismo”, para utilizarmos a expressão com que o pós-colonialismo figura o diabo.

Em À procura de Pancho, imagens de desenhos e grafias de Pancho surgem magicamente nas empenas dos edifícios que o estudante percorre. Não se trata de visitar uma colonização omnipresente e omnipotente mas de entrar num limbo entre os edifícios e a sua projecção delirante. Ora, o colonizador corrente não imperializa em forma de sonho arquitectónico; o colonizador correcto não sonha, executa. 

Pancho deixa-se também colonizar pela forma nativa, mas sem “orienta-lismo”, por reflexo da escrita automática do surrealismo, ou em correspondência com o interesse sobre o arcaico e o primitivo do tempo do Team 10. Tal como Denise Scott Brown, que, recorde-se, se formou na África do Sul, Pancho percebe que “aprender com” o que está à sua volta é a forma de trazer a arquitectura para uma necessária pós-modernidade. 

O racionalismo colonizador de Pancho está, à nascença, ferido de morte. O processo de “efeminização” e de “desumanização” do nativo com que o discurso pós-colonial descreve a força colonizadora é redireccionado para o “eurocentrismo”. O subconsciente de Pancho faz um pacto com o incons-ciente de Malangatana para dissolver o império. 

Na tela A viagem secreta (com retrato de Dori e Pancho) de 1960, que esteve exposta no Mercado de Santa Clara, Malangatana pinta o casal num quadro onde ele próprio figura nu com uma camisa vermelha e gravata. Pós-colonialismo avant la lettre? Quando Pancho aconselha o jovem Malangatana a não conhecer a arte ocidental estará a fugir às suas responsabilidades como colonizador? Quando acrescenta a sua pintura sobre artefactos nativos é imperialista ou procura uma alquimia? Quando imagina publicar as 1001 portas do caniço, fotografadas em belíssimos slides, pretende refundar o cânone ocidental? O mundo descentrado de Pancho, e aquilo que significa no seio do colonialismo português, não é explicável pela vulgata pós-colonial.  

Aqui, evidentemente, não se trata de falar de modo estrito sobre arquitectura – saber se é boa ou se é má, bem ou mal construída, etc. A obra de Pancho, na arquitectura principalmente, é um veículo para um descentramento radical que tinge o processo colonial português. Evoca-se a “despersonalização” de Fernando Pessoa, mas também a “Dispersão” de Mário de Sá-Carneiro, poetas modernos com uma aflição já pós-moderna. A obra de Pancho em Moçambique, porque não em estado de força colonial, parte-se em fragmentos e irradia essa dispersão.  

Estes dois acontecimentos de que aqui se dá conta, o filme e a exposição, na Internet e na Feira da Ladra, mostram a permeabilidade da obra de Pancho a diversos formatos. Porque não tem verdadeiramente um sítio ideal. Está em trânsito, desde que foi apanhada num momento de colonização. 

Para lá da tecnologia doméstica – que permite o sucesso global de À Procura de Pancho – o século XXI tem-se ocupado em refazer o século XX. Seja na perspectiva pós-colonial, feminista, desconstrutivista. No nosso caso, a Sul, o império da dispersão de Pancho é central para refazer a segunda metade do século XX português.

“Twentieth century/Collapse into Now.” (R.E.M. “Blue”. in Collapse into Now. 2011). |


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